Publico aqui parte do primeiro capítulo do meu romance apenas para apreciação. Aqueles que se interessarem, poderão acompanhá-lo através da Revista Pensamento, publicação trimestral, na qual "Se Acaso o Céu Cair" continuará sua jornada. A revista pode ser encontrada nas livrarias Cultura, Imperatriz (Shopping Recife) e Saraiva, e pedidos podem ser feitos pelo e-mail livrescribas@yahoo.com.br. Espero que gostem!
The Raveonettes. Lust. David Soule estava jogado no sofá de seu penumbroso apartamento com as pernas estiradas e cruzadas sobre a mesinha de centro. Sua camisa de botões estava aberta e sua calça jeans, puída como sempre. Na mão direita segurava uma dose de uísque, e na outra mantinha um cigarro aceso. Os lábios alternavam entre o líquido quente e pungente e a fumaça excitante. Os pensamentos vagueavam entre mundos que só ele conhecia e podia interpretar. A batida primitiva e o sentimental ruído dark dos anos oitenta ecoavam através da música executada no aparelho de som. Tudo o conduzia a mergulhos em seu infinito particular. Para ele era como se não houvesse a tempestade lá fora e os carros passando. Era como se os últimos meses fossem simples minutos que deveriam ser esquecidos.
Ao seu redor tudo o que ele pretendia esconder se revelava. Os cd’s que eram executados repetidamente espalhavam-se pelo carpete. Os livros comiam poeira nas estantes e hibernavam, assim como o talento daquele homem que esmorecia, embora ele nunca fosse admitir. E tragava o cigarro uma última vez percebendo que ele chegava ao fim, depositando-o no cinzeiro de pedra negra logo ao lado.
Seus olhos estavam cerrados e ele já se preparava para divagar pelos alicerces do nada uma vez mais até que o mundo real o forçou a despertar. Seu telefone celular vibrava sobre o tampo de vidro da mesinha e criava vida ao andar de lá pra cá. Foi com muita dificuldade que David ergueu as pálpebras e mesmo a fraca iluminação machucou sua vista. Levantando uma de suas sobrancelhas tentava em vão enxergar quem o incomodava através do visor colorido do aparelho. Preguiça e dúvida.
Tomando o último gole de uísque, fez cara feia e esticou os dedos a fim de alcançar o telefone. Resolveu atender sem saber quem ligava, pois sabia que se descobrisse provavelmente não receberia aquela chamada inoportuna. Pressionou um dos botões coloridos.
- Não estou! – falou com voz rouca e cansada, fechando os olhos novamente e imaginando que, se assim o fizesse, tudo poderia sumir permitindo que voltasse ao seu ato de niilismo e autopiedade. Mas não foi o que ocorreu, pois uma outra voz respondeu.
- Que se foda! Passei o dia te procurando, David!
- Não lhe ocorreu que talvez, apenas talvez, eu não quisesse ser encontrado?
- Não me venha com essa! – insistia o amigo. – Não tente bancar o Lebowski pra cima de mim! Porra, David! O que tenho pra te falar é importante.
- Não estou a fim de jogar boliche hoje. – brincou David.
- E eu não sou Walter! – completou o outro. – Mas o que você quer, David? Passar a noite inteira nesse sofá?
- Hoje eu só quero beber.
- Perfeito! Encontre-me no Sangue então e te pago tantos litros de uísque quantos você puder tomar. – e desligou.
David jogou o telefone sobre a mesinha de centro e refletiu um pouco sobre o que estava para fazer. Encheu o copo e engoliu todo o líquido de uma só vez. Certificou-se de estar com seu maço de cigarros e recolheu as chaves do carro. Sabia que se pensasse mais acabaria desistindo, e se levantou apenas. Deixou o apartamento atrás de si enquanto a canção se encerrava.
- Mas que merda, Tom! – disse antes de fechar a porta e tomar o elevador.
Em pouco tempo já dirigia pela cidade seu porsche amarelo no primeiro quarto de hora das vinte e uma horas. As gotas da chuva açoitavam o pára-brisa e as luzes dos postes passavam rápidas. Decidiu por tomar as vias menos usadas e contornar boa parte da cidade para chegar ao pub onde encontraria seu amigo. Assim teria mais tempo para si. Ao abrir o porta-luvas algumas multas de trânsito, camisinhas e uma carteira de cigarros esquecida foram ao chão. A lembrança do objeto em questão fez David sorrir com metade da boca enquanto procurava o disco que queria ouvir. Em questão de segundos era Highly Suspicious, de My Morning Jacket, quem dava as cartas, seguida de I’m Amazed.
David não pensava em absolutamente nada e permitia que a velocidade o levasse. Apenas ele, uma banda americana e seu automóvel. E naquele instante não precisava de qualquer outra coisa. Na rua, um gato que pretendia atravessar recuou assustado diante da passagem do carro. Um semáforo piscava descontrolado exigindo reparos. Uma mulher corria para escapar da chuva e alcançar logo seu lar. E o mundo existia independente da vontade do motorista niilista. Mas como as coisas nunca eram perfeitas e o destino não vivia em plena comunhão com os anseios dos homens, uma canção daquela compilação chegou aos ouvidos distraídos de David. Seu início era calmo e lento, como o prenúncio de uma tempestade, mas ia se erguendo aos poucos, avançando sobre os desejos e frustrações dele. A letra era triste. A melodia, depressiva. Falava sobre a partida de alguém num vôo vespertino. Sobre saudades do que já não era e sobre estar só no infinito. Sobre como é frio o inferno e como as feridas levam tempo para cicatrizar, permanecendo expostas aos males da vida. E de repente, para David, a banda de Kentucky não fazia mais tanto sentido.
Hesitando, ele retirou o disco e tudo ficou em silêncio. E depois veio o som da chuva e do motor. E depois não veio mais nada. Vários minutos foram necessários para que o motorista deixasse de lado as imagens amargas do passado até que luzes de néon surgiram e ele percebeu que se aproximava do local. Olhando através dos vidros do carro viu letras grandes e vermelhas que diziam: O Sangue de Keith. Era o pub onde Tom já o aguardava.
Quando David estacionou seu automóvel, a chuva abrandara. Desligando o motor e pegando seus pertences, desceu e só aí percebeu que seus pés estavam descalços, pois o asfalto gelado e úmido causou-lhe calafrios. De imediato, acendeu um cigarro para espantar a noite fria, e sem se preocupar avançou para a entrada do lugar. Havia uma agradável sensação de liberdade em caminhar descalço, e David sabia que poucas pessoas eram audazes o bastante para fazê-lo num lugar público no meio de uma noite como essa, e por isso mesmo o fazia com gosto. Subindo os degraus que davam acesso pôde distinguir o som que rolava lá dentro. Era Jeff Buckley, muito mal executado por sinal.
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