Diário transbordo: Você já olhou para o céu hoje?


Trabalho, estudo, cama, trabalho, estudo... Maldita rotina!

Foi convivendo com esse desagradável mal do homem contemporâneo nesses últimos meses que me dei conta da importância dos detalhes. Tão atribulada vidinha urbana nos faz ciclopes, capazes de ter uma visão desprivilegiada de todas as coisas, sejam elas importantes ou passageiras; e olhe que dessas últimas sou mais fã.

Caminhava pelas ruas malcheirosas do nosso centro da cidade quando um velhinho entrou em meu caminho. Deixava a labuta por volta das seis e vinte da manhã (a vida madruguesca não se revelou tão impressionante assim. Malditos escritores de ficção!) como faço sempre, pensando em minha cama, até perceber que em todos os dias um velhinho de mãos tortas ficava sentado na calçada, encostado ao muro da empresa, com os dedos estendidos em pedido eterno. Que contradição entre o rico capitalismo e a luxúria dos pobres! Quando resolvi lhe dar algumas moedas, obtive em troca o mais puro silêncio, e me perguntei: Será que a vida em desgraça é capaz de emudecer um homem?

E minha cadelinha, a adorável pestinha Tulipa, continuava doente. me causando a mais confusa das preocupações. Durante essa última semana, peguei dinheiro emprestado e corri como louco para seu veterinário. Os mesmos sintomas persistiam, mas o exame de sangue revelou que a doença do carrapato se fora. E o que restara? Um grau psicosomático de estresse animal causada por carência e síndrome do abandono, ou seja, minha falta criou-lhe um estresse profundo, gastrite e anemia. Tanto tempo fora de casa, e pouco tempo dentro dela mal aproveitado me fizeram escantear minha companheira para todas as horas, e mal pude notar que a coitada só piorava. Eis que resolvi fazer diferente, e estava atrasado para o curso já me preparando para partir quando percebi que repetiria as mesmas ações que vinha tendo - eu sairia, ela ficaria cabisbaixa num canto e eu só retornaria no dia seguinte para dormir. Então para surpresa dela, ignorei meus atrasos e a chamei para passear. A mudança foi nítida.

Minha namorada reclamava, vez por outra, da minha inabilidade direta com desconhecidos. Às vezes sou capaz de puxar uma conversa por horas à fio e nem me dar conta que falo com um estranho, mas na maior parte do tempo prefiro me resignar a um aceno de cabeça e só. Obviamente me justificava e justificava, e ela, coitada, só tentava compreender tudo, mas era humanamente impossível exigir isso de uma pessoa tão comunicativa. Então pedi-lhe para simplesmente aceitar minha condição de alguém reservado (quando quer ser). Até que chegamos a sua casa e de tão cansados, adormecemos. No dia seguinte, tendo ela partido para o trabalho, acordei sozinho. Ao deixar o quarto encontrei sua mãe na cozinha a preparar qualquer coisa, e normalmente só murmuraria palavras ininteligíveis e iniciaria meu dia, mal dando atenção ao que ela pudesse dizer. Mas resolvi parar. E tive uma esquisita e reconfortante conversa de quinze minutos.

Até que parei e contemplei um meio de tarde. Estava entre postes e edifícios, o som não era dos mais naturais e o ar tinha aquele acostumável cheiro de carbono, mas entre meros detalhes civilizados pude notar um céu tranquilamente azul, e lembrei de quando era criança e as ruas eram mais tranquilas. Me deitava no chão de areia em frente ao meu prédio e o céu se tornava o limite. Passava horas a contemplá-lo e parecia que a terra girava as minhas costas. E nesse momento percebi que nunca mais tinha parado para contemplar o céu. Perdi alguns minutos com aquilo...